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Políticas públicas para mulheres nas ciências - um breve histórico e perspectivas

 


Atualizado em 12 de março de 2021.

  Aproveitamos a oportunidade do Dia Internacional da Mulher para comentar alguns aspectos políticos da carreira científica das mulheres no âmbito nacional. De que forma o governo brasileiro e as entidades de pesquisa ou instituições de ensino compreendem, hoje, as disparidades entre homens e mulheres na academia? Quais são as medidas para reduzir as desigualdades? Como a questão da maternidade e paternidade é tratada no trabalho de pesquisa? Como a pandemia de covid-19 tem afetado as mulheres cientistas e que futuro podemos vislumbrar diante do cenário negacionista que assombra nosso país? É importante ter em mente que não existe a profissão “cientista” no Brasil. Quando se escolhe “fazer pesquisa”, na grande maioria das instituições públicas, é necessário percorrer um trajeto indissociável da docência. Portanto, a pesquisadora também é professora. Vamos elencar alguns eventos significativos que alavancaram as discussões feministas até chegarmos ao assunto principal desse texto: as mulheres nas ciências. 

 

Um resgate histórico


Essa data em que comemoramos as lutas pelos direitos das mulheres tem raízes confusas. Algumas fontes ainda reportam sua origem na greve de trabalhadoras norte-americanas duramente repreendidas em 08 de março de 1857 e em alguns protestos no início do século XX. O projeto “As Mina na História” traça um panorama desses eventos, desmistificando as nebulosidades em torno das razões pelas quais se comemora o Dia Internacional da Mulher em 08 de março, com base nos livros “As origens e a comemoração do Dia Internacional das Mulheres”, de Ana Isabel Álvarez Gonzalez, e “A Revolução das Mulheres - emancipação feminina na Rússia soviética: artigos, atas, planfletos, ensaios”, organização de Graziela Schneider Urso. O fato é que houve uma série de manifestações de mulheres trabalhadoras, especificamente nos Estados Unidos e na Europa que, em diferentes datas, culminaram em comemorações do “Dia da Mulher”. Foi em 1910, durante a Segunda Conferência Internacional das Mulheres Socialistas que surgiu a proposta do Dia Internacional das Mulheres. A partir de então, o movimento organizado das mulheres socialistas passou a coorderar as comemorações que aconteciam em diferentes datas para cada país e, em 1921, houve a proposta de fixar a data em 08 de março como lembrança das lutas das mulheres russas que desembocaram na Revolução de 1917. Você pode conhecer melhor essa história com a leitura dos textos “Dia Internacional da Mulher: em busca da memória perdida” e “08 de março, dia de luta feminista por #ForaBolsonaro”. O Portal Geledés, em publicação de 2012, resgata os marcos das conquistas das mulheres na história, dentre os quais selecionamos alguns (apenas para não reproduzir integralmente):

  • 1759 – Publicação da Declaração dos Direitos da Mulher pela escritora e militante francesa, Olympe de Gouges

  • 1827 – Primeira legislação (no Brasil) relativa à educação de mulheres (apenas em escolas elementares)

  • 1879 – Abertura das instituições brasileiras de ensino superior às mulheres

  • 1910 – Fundação do Partido Republicano Feminino pela professora Deolinda Daltro

  • 1921 – Primeira partida de futebol feminino ocorre em São Paulo

  • 1921 – Constituída Federação Brasileira pelo Progresso Feminino, liderada por Bertha Lutz

  • 1928 – Primeira prefeita eleita na história do Brasil: Alzira Soriano de Souza em Lages, RN

  • 1932 – Sufrágio feminino no Brasil

  • 1951 – A Convenção de Igualdade de Remuneração entre trabalho masculino e feminino para função igual é aprovada pela Organização Internacional do Trabalho

  • 1975 – Nações Unidas institui o Ano Internacional da Mulher

  • 1975 – Criação do Centro da Mulher Brasileira (RJ) e Centro de Desenvolvimento da Mulher Brasileira (SP)

  • 1983 – Criação do Programa de Atenção Integral à Saúde da Mulher (Ministério da Saúde)

  • 1985 – Aprovado Projeto de Lei nº 7353: Conselho Nacional dos Direitos da Mulher

  • 1995 - Realização da IV Conferência Mundial das Nações Unidas sobre a Mulher

  • 1996 – Criação de sistema de cotas na legislação eleitoral, obrigando os partidos a inscrevem, no mínimo, 20% de mulheres em suas chapas proporcionais. Em 1997, a Lei nº 9504 eleva o percentual para 30%

    São diversos marcos os quais citamos apenas estes para elucidar que as conquistas atuais somente foram possíveis devido à dedicação de tantas mulheres, em diferentes partes do mundo, em diferentes períodos, que resistiram às mais perversas opressões através de greves e manifestações, criação de organizações, jornais independentes, inserção nos esportes, na política, nas artes e na educação. Os resultados que vemos nas políticas públicas não são mera boa vontade dos governos. São frutos de muita luta, protesto, indignação, gritos mas também diálogos. MELO et al. se referem à inserção significativa da mulher no mercado de trabalho a partir das décadas de 60 e 70. Entretanto, para que não haja interpretação dúbia, é necessário compreender que as mulheres sempre trabalharam: seja nas lavouras, nas casas dos escravocratas, na confecção artesanal, nas casas de prostituição, nas fábricas e em seu próprio lar. Quando se fala em mercado de trabalho, o conceito utilizado se baseia na lógica capitalista que considera a população economicamente ativa (PEA) e, a questão em si, trata-se de observar o aumento da representatividade feminina em profissões e cargos historicamente ocupados por homens perpassando pelo nível de escolaridade, matrícula no ensino superior, atuação em cargos administrativos e políticos. SCORZAFAVE & MENEZES-FILHO (2006) caracterizaram o perfil socioeconômico das mulheres participantes do mercado de trabalho no Brasil, entre 1982 e 2002, mostrando que o aumento da escolaridade contribuiu significativamente para a inserção feminina nas mais diversas áreas, sendo que o maior crescimento ocorreu entre mulheres brancas, cônjuges, com idade entre 25 e 44 anos e 4 a 11 anos de estudo.

 

Era uma vez...


    Considerando as regras da geopolítica internacional – não é o caso nos estender nas explanações sobre a lógica colonizadora do capitalismo global - houve um tempo em que Brasil era país (bem, brasil era muito mais do que “país” antes da chegada dos portugueses). Mas já que aqui estamos… Era participativo nas questões amplamente discutidas pelos países do chamado 1º mundo e inserido nas ações desenvolvimentistas dos chamados países emergentes. Os governos brasileiros preocupados com as questões de gênero promoviam uma série de medidas nesse sentido como a “criação da Secretaria Especial de Políticas para as Mulheres, em 2003; criação da Secretaria de Educação Continuada, Alfabetização e Diversidade, do Ministério da Educação (MEC); realização da 1ª Conferência Nacional de Políticas para as Mulheres (CNPM) e formulação do I Plano Nacional de Políticas para as Mulheres (PNPM), em 2004; lançamento do Plano de Desenvolvimento da Educação; realização da 2ª CNPM e formulação do II PNPM, em 2007; lançamento do Plano Nacional da Educação (PNE) 2011-2020, em 2010 (…)” (GROSSI et al., 2016).

    Durante o período de democratização do país – sim, houve um vislumbre de democracia no chamado Brasil – aconteceu a 1º Conferência Nacional de Ciência e Tecnologia, em 1985, onde foram discutidos temas que permanecem atuais como o fortalecimento da C&T e a melhoria da divulgação científica. Foi apenas em 2004 que, neste âmbito das organizações nacionais do setor, começaram as discussões sobre políticas de gênero, resultando no “Programa Mulher & Ciência” (COSTA et al.). Esse trabalho mencionado destaca a importância das contribuições de duas físicas que vem atuando fortemente nas políticas científicas para mulheres: Elisa Saitovitch e Márcia Barbosa. Ao analisar o documento, podemos afirmar que esses movimentos foram embriões das diversas iniciativas que surgiram posteriormente sobre questões de gênero e raça, hoje ampliadas para os diversos grupos socialmente marginalizados.

    Atualmente, na Unesp, uma das maiores universidades do país, o número de mulheres na graduação supera o de homens: são 18.357 alunas e 17.850 alunos nas diversas áreas. Na pós-graduação, a proporção de mulheres é de 54,5% em todos os programas: são 6.506 pesquisadoras e 5.431 pesquisadores. Apesar das mulheres serem maioria, BARBOSA & LIMA (2013) apontam que o crescimento da participação feminina no ensino superior é desigual para as diferentes áreas do conhecimento, em especial nas ciências exatas.


O que ainda está em curso? O que foi perdido durante as últimas gestões federais?


    O “Programa Mulher & Ciência” está parado (a última modificação feita no site foi em 2019, sendo que as últimas edições de alguns eventos aconteceram em 2017, após o golpe). Hoje, diversos projetos de incentivo às mulheres nas ciências partem das Universidades, como ações extensionistas, ou de iniciativas privadas como o Prêmio para Mulheres na Ciência da L’Oréal junto à UNESCO e à Academia Brasileira de Ciências. Alguns programas/projetos são:

- Prêmio Carolina Bori Ciência & Mulher (SBPC)

- 500 Mulheres Cientistas (500WS)

- Descolonizando Saberes

- Meninas Supercientistas (Unicamp)

- Engenheiras de Borborema

- Mulheres na Ciência (site)

- Mulheres na Ciência (UFSC)

- Meninas com Ciência (UFRJ)

- Mulheres Negras Fazendo Ciência (UFRJ/CEFET-RJ)

- Akotirene Kilombo Ciência

- Pequenas Cientistas (UFSCar Sorocaba)

- Energéticas

- Minas faz Ciência (UFMG)

- LabElas: mídias digitais e software livre na Escola Estadual Indígena Pankararu Ezequiel

- Astrominas (IAG-USP)

- Projeto ProgrAmazonas

- Projeto Cecília (IAG-USP)

- Mulher, Ciẽncia e Sociedade

- Parent in Science

         - Investiga Menina!

- Meninas na Ciência (UFRGS)

- A ciência que fazemos (UFJF)


    Aliás, se você quiser entender como e quem financia a pesquisa no Brasil, esses artigos podem ser úteis:

- https://jornal.usp.br/universidade/levantamento-mostra-quem-financia-a-pesquisa-no-brasil-e-na-usp/

- https://www.politize.com.br/cnpq-o-que-e/

- https://revistapesquisa.fapesp.br/o-financiamento-a-pesquisa-cientifica/


    Para finalizar nossas reflexões, disponibilizamos um levantamento realizado pelo Movimento Parent in Science que mostrou a produtividade acadêmica durante a pandemia de Covid-19. Antes de ler, o que você espera encontrar em relação à produtividade de homens e mulheres? E mulheres mães? Você pode acessá-lo aqui.

    O retrocesso que vivemos em todos os setores e dimensões é imensurável. As consequências de tamanho negacionismo (não apenas, pois eles sabem o que fazem), infelizmente, estão explícitas nas mais, muito mais, de 265.411 mortes. Genocídio é o nome correto. Este é um “Dia da Mulher” de poucas comemorações, ainda mais quando o “confinamento” (fajuto) possibilita o aumento do número de casos de feminicídio12. Esperamos – inspiradas no “esperançar” de Paulo Freire - que os próximos não sejam assim.

Após a publicação desse texto saíram as seguintes notícias:

- Senado aprova projeto que incentiva a participação da mulher na ciência. Fonte: Agência Senado

- Novo informativo do Parent in Science sobre a participação das mulheres no ensino superior e na ciência no Brasil.

Crédito: British Council


Referências 


COSTA, Maria; STEFANELO, Betina; LOPES, Maria M. Programa Mulher e Ciência: breve análise sobre a política de equidade de gênero nas ciências, no Brasil. XI Congreso Iberoamericano: Ciencia, tecnología y género. 2016.


GROSSI, Márcia Goretti Ribeiro et al. As mulheres praticando ciência no Brasil. Rev. Estud. Fem., Florianópolis, v. 24, n.1, p. 11-30, Abril, 2016. Disponível em: https://www.scielo.br/scielo.php?pid=S0104-026X2016000100011&script=sci_abstract&tlng=pt


MELO, Hildete Pereira de et al. Gênero no Sistema de Ciência, Tecnologia e Inovação no Brasil. Rev. Gênero, v.1, 2004.


SCORZAFAVE, L. G.; MENEZES-FILHO, N. M. Caracterização da participação feminina no mercado de trabalho: uma análise de decomposição. Econ. Apl., v. 10, n. 1, Ribeirão Preto, jan/.mar. 2006.


TV Unesp. Homenagem às unespianas no Dia Internacional da Mulher 2021. Disponível em: https://www.youtube.com/watch?v=WGOk_IM1JIY

 

1https://www.diariodepernambuco.com.br/noticia/vidaurbana/2021/03/glauce-medeiros-a-secretaria-na-linha-de-frente-no-combate-a-violenci.html

2https://g1.globo.com/politica/noticia/2021/03/07/brasil-teve-105-mil-denuncias-de-violencia-contra-mulher-em-2020-pandemia-e-fator-diz-damares.ghtml

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